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A terrível história da baronesa que torturou e matou um garoto negro de 8 anos no Maranhão em 1876

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Em 1876, Inocêncio, um garoto negro, escravizado, morreu na casa de Anna Rosa Viana Ribeiro, uma senhora branca da alta sociedade, casada com o médico e político liberal Carlos Fernando Ribeiro, que depois se tornaria Barão de Grajaú, no Maranhão. O caso, emblemático da crueldade da escravidão da época, ficou famoso como "o crime da Baronesa de Grajaú".

Antes das 6h de 14 de novembro de 1876, uma movimentação no centro de São Luís chamou a atenção de Geminiana, uma jovem negra de cerca de 25 anos, que recentemente comprara sua alforria e vivia na rua do Mocambo. Era um enterro.

O caixão era pequeno e estava trancado a chave. Dada a hora, antes do sol forte da manhã maranhense, era de se imaginar que alguém ordenara um enterro discreto de uma criança, quase que na surdina. Junto a sua mãe, Simplícia, Geminiana seguiu os carregadores que levavam o caixão rumo à capela de São José, ao lado do cemitério do Gavião. Lá, precisou protestar para abrirem o esquife. E confirmou o que temia: era seu filho, Inocêncio.

Geminiana viu o corpo de Inocêncio coberto por cicatrizes, contusões e ferimentos. O exame de corpo de delito depois revelaria que a criança tinha sofrido hemorragia cerebral, escoriações, equimose, queimaduras, feridas provocadas por cordas e chicotes, sinais de ruptura do reto e machucados no ânus.

Inocêncio vivera os últimos três meses de vida no Solar das Rosas, o sobrado de Anna Rosa Viana Ribeiro, no centro de São Luís. Ele e seu irmão mais novo, Jacinto, tinham sido comprados como "presentes" para os filhos dela, que estavam estudando na Europa.

Jacinto morrera no dia 27 de outubro de 1876, também no casarão, mas o caso não foi investigado. Anna Rosa, que se dizia alvo de uma "devassa difamatória", argumentava que os garotos tinham "vício de comer terra", o que lhes teria feito adoecer e morrer.

Entretanto, Anna Rosa, vinda de uma das principais famílias escravistas de Codó, no interior do Maranhão, já era conhecida pelos castigos cruéis infligidos a seus serviçais.

Certa vez, por exemplo, mandou arrancar todos os dentes de Militina, uma escrava que sorriu a seu marido, o médico Carlos Fernando Ribeiro - em 1884, Dom Pedro II lhe concedeu o título de Barão de Grajaú.ÉDITO,MP/MA

Dado o histórico de Anna Rosa, foi aberto inquérito para investigar a morte de Inocêncio. Os autos do processo, que ficou conhecido como "o crime da Baronesa de Grajaú", contam com mais de 800 páginas. Ela foi processada pelo promotor Celso Magalhães (1849-1879).

Documento do século 19 só foi redescoberto na década de 1970

A baronesa chegou a ser presa e foi julgada por homicídio, mas terminou absolvida pelo júri, em fevereiro de 1877, apesar das evidências de tortura e dos testemunhos. O promotor tentou recorrer, sem sucesso.

Condenar alguém como Anna Rosa era praticamente impossível na época, dada a composição elitista do júri, diz o promotor de Justiça Washington Luiz Maciel Cantanhêde, integrante do Programa Memória do Ministério Público do Maranhão (MPMA).

"[Mas] o fato de conseguir a promotoria de São Luís levar aquela senhora de escravos a sentar-se no banco dos réus do tribunal do júri - que de popular nada tinha, porquanto era expressão de uma sociedade excludente e escravocrata - dá a medida da importância his

Magalhães, o promotor que processou Anna Rosa, acabou demitido por Ribeiro, o marido da ré, recém-empossado presidente da Província do Maranhão, em 1878.

O julgamento da baronesa escandalizou a sociedade do século 19, foi bastante discutido na imprensa da época e ficou marcado na memória maranhense. Entretanto, os documentos originais se perderam com o tempo — até que, em 1975, foi publicado o romance Os tambores de São Luís, de Josué Montello (1917-2006), que reconstitui, literariamente, o caso de Anna Rosa.

Montello relevaria, num livro de memórias, que obteve os documentos originais do processo por acaso, durante uma visita a Brasília. O autor queria incluir no romance "o famoso crime da Baronesa de Grajaú, de tanta repercussão na sociedade maranhense do tempo do Império", escreveu."Onde encontrar o seu relato? E eis que um dia, de passagem por Brasília, nas minhas andanças administrativas de reitor, fui almoçar na casa do Senador José Sarney", registrou o escritor.

"Conversa vai, conversa vem, e entre o tinido dos talheres e a mudança dos pratos, falei-lhe do crime, para ver se ele poderia ajudar-me a recompô-lo. Sarney saiu da mesa e voltou daí a momentos com dois volumes compactos de papéis velhos, que passou às minhas mãos: 'Aí tem você o processo da Baronesa'."

Sarney teria recolhido os documentos em uma pilha de processos antigos do Tribunal de Justiça do Maranhão, onde trabalhou na juventude, que seriam jogados fora. Após escrever o livro, Montello entregou os papéis ao Museu Histórico e Artístico do Maranhão.Em 2009, o MPMA obteve a guarda dos autos. Aí se iniciou a transcrição integral dos dois volumes do processo, realizada pelas historiadoras Kelcilene Rose Silva e Surama de Almeida Freitas, e foi publicada a primeira edição do livro Autos do processo-crime da Baronesa de Grajaú: 1876-1877.

Em 2019, os documentos originais foram digitalizados e disponibilizados ao público, em alta resolução; e, em 2020, a segunda edição do livro também foi disponibilizada gratuitamente na internet.

A iniciativa de preservação e difusão dos autos do caso da baronesa foi finalista do Prêmio do Conselho Nacional do Ministério Público de 2021, contemplada com o Selo Respeito e Diversidade.

Para a promotora de justiça Ana Luiza Almeida Ferro, "o processo traduz um marco na luta pela afirmação da causa abolicionista a partir da arena jurídica, bem como uma referência na evolução da defesa dos direitos humanos no Brasil".Inocêncio, lembra a promotora, nasceu antes da Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro 1871 - e morreu antes da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888. Não estava protegido por nenhuma delas.

"Então a tortura de escravos, dentre eles crianças, ainda era, insuportavelmente, mesmo ao arrepio da lei, uma prática de senhores da época, de elevada impunidade", diz Ferro, integrante do Programa Memória do MPMA, da Academia Brasileira de Direito e da Academia Maranhense de Letras.

"Mais moderno, impossível, sobretudo em um tempo onde felizmente é desafiada, cada vez mais, a vergonhosa herança de preconceito e discriminação vinda do escravismo."

A luta de uma jovem mãe negra por justiça

Desde que foram redescobertos, os documentos do processo contra a baronesa embasaram estudos nos campos da criminologia, do direito e da história, entre outros.

O caso é emblemático, destaca o historiador Alexandre Cardoso, professor adjunto da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), onde coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Social dos Sertões (NEPHSertões).

"Mas sempre se lembra do promotor e da baronesa. O menino, a mãe e a avó são apagados. Na memória que se constituiu em torno desse evento o que se vê é 'o crime da baronesa', não a infância da criança escravizada, a maternidade da negra liberta", critica.

Foi Geminiana, a mãe de Inocêncio, quem protestou para abrirem o caixão e descobriu que ali estava seu filho.

"Não eram nem 6h, era uma tentativa de enterro clandestino. E quem estava na rua a essa hora? Quem trabalhava, as mulheres pretas, carregadoras, lavadeiras, vendeiras, e foram elas que fazem 'a grita'. O escândalo de ver aquela mãe enlutada, vendo o filho muito machucado, às vistas de todo mundo. O pessoal foi para a porta do cemitério, foi para a capela, foi para a rua protestar", conta.

Segundo Cardoso, o processo contra a baronesa foi focado no mundo senhorial e não necessariamente num forte posicionamento contra a escravidão por si. O discurso, destaca ele, era sobre "bons" e "maus" senhores - e a baronesa era um exemplo de má senhora."O discurso da época não era contra a escravidão, era mais sobre tirar maçãs podres como Anna Rosa", avalia a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora da Universidade de São Paulo (USP) e atualmente professora visitante da Universidade de Reading, no Reino Unido.

Em 2021, Cardoso e Machado escreveram sobre o caso na coletânea Ventres Livres?, organizada por Machado junto a outros historiadores, Luciana da Cruz Brito, Iamara da Silva Viana e Flávio dos Santos Gomes.

Atualmente, estão escrevendo um novo livro, Geminiana e seus filhos. Com apoio do pesquisador Hugo Enes, que realizou pesquisas nos arquivos, cúria e cartórios do Maranhão, eles pretendem reconstituir a trajetória da família de Geminiana."É uma história que vê a luta política dos escravizados. Nos interessa contar como essa mãe, preta, pobre, liberta, lutou", diz Machado.

"Nós somos dois pesquisadores brancos. Não queremos explicar para as pessoas que sofrem racismo o que é racismo, longe de nós. Queremos poder contribuir com o que a gente pode, que é a pesquisa histórica."

A partir da documentação disponível, entende-se que Geminiana nasceu no engenho da família Teixeira Belfort, na vila de Rosário, a 70 km de São Luís.Ela, escravizada, foi cedida como dote de casamento da filha de Teixeira Belfort, mudando-se para São Luís, onde teve duas filhas, Zaira e Constança. Depois, voltou para o engenho, onde teve dois filhos, Inocêncio e Jacinto.

Na década de 1870, Geminiana e sua mãe, Simplícia, conseguiram comprar alforria. Constança faleceu, mas não há detalhes sobre sua trajetória, devido à ausência de registros. Zaira, de cerca de 12 anos, foi vendida para outra família, os Araújo Trindade.

Inocêncio e Jacinto foram vendidos para negociantes, que os passaram para Anna Rosa. Eram chamados de "escravinhos".

"Eles viveram torturas terríveis. As crianças eram amarradas em gaiolas de jabuti, chicoteadas. O exame de corpo de delito é apavorante. O corpo de Inocêncio, que nunca foi notado em vida, que era visto como uma mercadoria, passou a ser notado só depois da morte", diz Cardoso.

"Mas não se via o Inocêncio, via-se um corpo dilacerado. Imagine o que ele passou e o que ele sentiu ao ver o irmão morrer. Nós escrevemos e choramos, escrevemos e choramos", acrescenta Machado.

Os destinos de Anna Rosa e Geminiana

Mais de um século depois do caso, Celso Magalhães seria consagrado como patrono do Ministério Público do Maranhão, em 1991.

Historiadores como Cardoso e Machado, todavia, têm ressalvas quanto à memória que se construiu sobre Magalhães, retratado como republicano e abolicionista.

Segundo a análise dos autores, não era bem assim: o promotor, que fazia parte do Partido Conservador, seria seguidor de ideias racialistas, seguindo tendência do contexto de inspiração científica de hierarquização e classificação de "raças" à época, que alegava inferioridade racial de populações negras e indígenas.

Magalhães também foi o promotor que processou Geminiana e outras oito mulheres negras, entre escravas e libertas, lideradas pela pajé Amélia Rosa, em novembro de 1877. Elas foram acusadas de agredir Joana, uma escrava da família Araújo Trindade, que certo dia surgiu espancada e pedindo socorro nas ruas da cidade.

Joana teria ido à casa de Amélia Rosa para matá-la a mando do advogado Francisco Duarte, que atuara na defesa de Anna Rosa. Os autos do processo estão no Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Maranhão.

Amélia Rosa assumiu a culpa da agressão a Joanna, supõe-se que para livrar suas companheiras de pajelança, uma prática popular religiosa que combina elementos das culturas africanas e indígenas. Mas a confissão da pajé não absolveu as demais, que também foram consideradas culpadas.

"Penso que Celso Magalhães fez a acusação contra réus tais como Anna Rosa Viana Ribeiro com muito gosto e, a contragosto, acusações contra réus vulneráveis, mas ainda assim passíveis de punição, na visão dele, que era, afinal, um promotor", afirma o promotor Washington Luiz Maciel Cantanhêde, do MPMA.

"Tal fato eleva-o mais ainda como agente da justiça considerado, ontem como hoje, a parte imparcial."

Nos tribunais, as rés tiveram destinos diferentes: Geminiana, negra liberta, foi condenada a 5 anos de prisão; Anna Rosa, baronesa branca, foi absolvida.

Correção: Após a publicação, os historiadores Alexandre Cardoso e Maria Helena Pereira Toledo Machado pediram a retificação de uma das informações providas à reportagem: Celso de Magalhães não era seguidor especificamente de Nina Rodrigues, como dizia o texto, mas, nas suas palavras, "seria seguidor de ideias racialistas, seguindo tendência do contexto de inspiração científica de hierarquização e classificação de 'raças' à época, que alegava inferioridade de populações negras e indígenas". O texto foi editado

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